Clarisse Aun mostra orgulhosa o crachá de voluntária no Poupatempo. |
Do
Palácio do Planalto veio a resposta, informando que Lula não tinha interesse
pela propriedade. Mas a mulher não se deu por vencida e voltou até Clarisse,
lhe pedindo que nova carta fosse escrita e enviada, insistindo na oferta. “Talvez
ela até soubesse ler e escrever, mas não fosse capaz de redigir uma carta para
o presidente”, supõe Clarisse, justificando o pedido da mulher. O programa
Escreve Cartas, que em outubro do ano passado completou 10 anos, atende em sua
maioria pessoas que não sabem ler nem escrever e querem entrar em contato com
um parente distante ou precisam preencher um formulário, mas também serve
aqueles que querem uma carta feita no computador, precisam de ajuda para criar
um currículo ou mesmo que não têm muita agilidade com a escrita. De 2001 até novembro,
foram 266,5 mil atendimentos, segundo contagem do Poupatempo.
Mãe
de dois filhos e avó de um neto de pouco mais de um ano, Clarisse mora sozinha
(o marido morreu há 33 anos) no Jardim Marajoara, zona sul de São Paulo. É
voluntária no programa desde sua criação. Ficou sabendo por uma amiga que
seriam abertas vagas para voluntários (o que ocorre duas vezes por ano), se
inscreveu, fez uma carta para um “amigo imaginário” conforme pedia o teste
aplicado pelo Poupatempo e foi aprovada. Desde então, uma vez por semana ela dá
plantão da unidade de Santo Amaro, vindo a ouvir as mais inusitadas das
histórias, alegres ou tristes, engraçadas ou incompreensíveis.
A
maioria das cartas, segundo ela, é endereçada a programas de TV como os do Gugu
Liberato e do Luciano Huck, com quadros que oferecem desde a reforma do carro
ou da casa até o retorno à terra natal. “Eles ficam entusiasmados e vêm aqui
para pedir para escrever. Ficam felizes quando põem a carta no correio, achando
que dali a pouco vão ser atendidos”, conta Clarisse, que já intermediou pedidos
de instrumentos musicais, emprego e ajuda financeira. “Já teve carta feita aqui
que foi sorteada, naquele ‘De Volta para Minha Terra’ (quadro do Gugu). E ele
(o sorteado) veio aqui para se despedir e agradecer”, conta.
Clarisse
escreve, mas, sem desanimar o remetente, explica a realidade. “Eu falo para a
pessoa: ‘pede ajuda a Deus, que eu vou pedir do meu lado, para a gente
conseguir, mas saiba que é difícil’”.
Assumidamente
chorona, a aposentada, que trabalhou durante muitos anos como secretária, diz
que não raras vezes precisa se esforçar para não chorar no exercício desta sua
função. Mas nem sempre consegue. Anos atrás, uma senhora a procurou para
escrever uma carta ao filho que estava preso, informando que o irmão dele havia
morrido de diabetes. “Uma pessoa muito humilde, mas muito sábia. Do jeito que
ela foi falando, foi me emocionando. E eu não resisti”, relembra Clarisse, acreditando
ter sido esta, talvez, a mais triste de todas as cartas escritas. “A gente tem
que se controlar. Não fica muito bonito molhar o papel da carta com as lágrimas”,
conta, hoje em dia entre risos.
Situações
parecidas foram vivenciadas pela funcionária pública aposentada Márcia
Sargueiro Calixto, de 58 anos, que mora na região do Aricanduva, zona leste de
São Paulo. Certa vez, uma mulher esteve na unidade de Itaquera, onde ela é
voluntária, pedindo para escrever uma carta para o marido preso. E enquanto uma
colega atendia a mulher, a filha desta, sentada em frente à Márcia, lhe pediu
para que outra carta fosse escrita, só que para um programa de TV. Ela queria
pedir que reformassem a casa da mãe e, durante a reforma, lhe fosse concedido
um “Dia de Princesa” (outro quadro comum em programas televisivos nos dias de
hoje).
Márcia Calixto na mesa onde atende voluntariamente. |
Era
a forma que a menina, que apesar da pouca idade também já era mãe, achou para
pedir perdão pelos desgostos que já havia dado à mãe. “A chance de sua carta
ser escolhida é pequena, mas você pode pedir desculpas para ela aqui”, sugeriu
a voluntária. “Você dita, eu escrevo e a leio em para ela. Você fica só
ouvindo”. A moça aceitou a sugestão e assim foi feito, logo depois de a carta
para o marido preso ter sido concluída. Ao final do pedido de perdão, as duas
se abraçaram e começaram a chorar. Márcia também não se conteve.
Em
outra ocasião, a voluntária foi surpreendida por um homem com seus mais de 60
anos que queria escrever uma carta para a vizinha, a quem estava paquerando.
Ele trazia consigo um papel todo amassado, contando que nele havia um poema.
“Alguém deixou a folha cair no ônibus, ele tentou avisar, mas a pessoa desceu
rapidamente e ele acabou ficando com o papel”, explica Márcia. Na carta
solicitada, ele pedia a vizinha em namoro, citando o poema achado no chão do
ônibus. Dizia que era uma oportunidade de recomeçaram a vida, já que ambos eram
viúvos e estavam sozinhos. “A ideia era muito bonita, mas ele não voltou para
contar o resultado”, lamenta.
Analfabetismo e voluntariado
Clarisse
e Márcia optaram pelo voluntariado por dois motivos. Primeiro, para terem uma
atividade dentro da vida de aposentadas, mesmo que por poucas horas na semana.
Clarisse se candidatou ao Escreve Cartas muitos anos depois da aposentadoria,
mas Márcia o fez mesmo antes de deixar o trabalho no Estado. Tinha medo de não
ter o que fazer além de cuidar da casa. Então, se apressou.
Mas
o segundo motivo que moveu a ambas foi o de poder ajudar quem, ao contrário
delas, nunca teve a oportunidade de lidar com as letras. No país, 9,6% da
população são analfabetos, segundo dados divulgados em novembro pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“O
analfabetismo é muito grande ainda”, constata Clarisse diante de sua
experiência de 10 anos no programa. “Tem muita mulher que vem aqui e conta a
vida, diz que teve que ir trabalhar na roça cedo e não pôde estudar”. E além de
ajudar escrevendo carta ou preenchendo algum formulário, a aposentada dá um
empurrãozinho a mais. “A gente aconselha que eles voltem a estudar. Nunca é
tarde. Às vezes a pessoa diz que é velho e tem vergonha. Não tem que ter
vergonha”, afirma.
Depois
de tantos anos no Escreve, Clarisse hoje ocupa o cargo de coordenadora do
plantão das quartas-feiras. “Eu adoro ficar aqui, não falto, só mesmo se tiver
uma labirintite. Do contrário, não falto nunca, porque faz muito bem pra mim. É
muito pouco o que eu faço. Quem sabe não poderia fazer mais. Mas cada um
fazendo um pouquinho, junta um poucão”, diz a aposentada, que também já foi voluntária
da Apae e hoje em dia também dá uma mãozinha na Santa Casa de Santo Amaro, como
vendedora de um bazar de artigos doados.