terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Deusa e sua biblioteca comunitária

Maria Delzira dos Santos, a Deusa, 47 anos, queria fazer faculdade de pedagogia. Iniciou o curso, mas não houve meio de continuar. Tentou então o secretariado bilíngue. Mais uma vez, sem chance. E a sequência de tentativas frustradas, acrescida da necessidade de colocar o pão à mesa, a fez parar de sonhar e voltar-se para o concreto. Literalmente. "Ela pega na ferramenta, ergue parede. Eu tenho medo de mexer com elétrica e ela não tem", comenta o atual marido da mulher que ultimamente ganhou o apelido de Pereirão (em referência à personagem de Lília Cabral na novela da Globo) na comunidade onde vive.

Deusa mora na favela do Areião, no Guarujá, litoral de São Paulo. Com os próprios braços está erguendo mais paredes em casa. Mas só no dia em que tem uma folga, entre uma obra e outra que faz pela cidade. As que são possíveis, claro, porque no Guarujá ninguém quer saber de contratar mulher para trabalhar no pesado. "Eu carreguei mais de 45 carrinhos para fora de aterro e nem por isso deixei de ser mulher. Quando a gente quer, tem que ir à luta". Mas parece que essa luta não é muito bem vista ao olhar masculinizado do mundo da construção civil. Até o marido acaba ganhando um puxão de orelha durante o bate-papo na calçada da rua estreita onde Deusa vive. "É preconceito dele também, porque, se ele quisesse, dizia que só aceitava o serviço se eu fosse junto e pronto". Nada mais justo. Afinal, é ela quem criou e administra a firma que emprega o companheiro.

Deusa é cheia das iniciativas, e a ampliação que faz no cômodo da rua A do Areião tem a ver com uma ideia que surgiu lá no passado, está encostada do outro lado da rua, no cômodo de um vizinho, e talvez nem volte a se tornar realidade. Deusa é dona de uma biblioteca. Durante anos, gente de toda a comunidade e de bairros até distantes, como Perequê e Morrinhos, mantinham bem ativas suas carteirinhas de empréstimo. No caderno de registros, mais de 200 leitores de todas as idades. Cuidar da Biblioteca Comunitária do Areião era um gosto para Deusa. Era dela. Criada a partir de livros escolares dos filhos e expandida com doações que foram chegando com o tempo, especialmente depois das reportagens concedidas a rádios, jornais e televisão. Ela não queria aparecer, mas todos queriam noticiar.

Bons tempos os em que ela podia se dedicar à biblioteca e, quando saía para trabalhar, contava com os filhos, que se encarregavam do entra e sai que transformava sua casa em local público. Suas quatro paredes recebiam a todos e com os leitores pequenos ela até chegou a por em prática parte do sonho de ser pedagoga. Deu aulas de reforço escolar, contava histórias. Foram tardes e mais tardes com a sala cheia, em roda, mexendo com o imaginário que só um livro pode despertar.

A biblioteca ajudou Deusa a superar momentos difíceis, como a perda de um filho atropelado aos sete anos e outro com um ano e nove meses, em razão de uma pneumonia. Hoje, um teria 24 e o outro, 22. Mas agora, que os demais filhos de pequenos se tornaram grandes e, casados, foram cuidar de suas vidas, Deusa não tem como manter a biblioteca. Não há quem fique em casa, fazendo os empréstimos, quando o trabalho de Deusa chama.

Ela nunca ganhou nada com a biblioteca, a não ser mais trabalho a cada dia em função das doações que nunca pararam de chegar. Mesmo assim, "fazia com carinho, não tinha tempo ruim", diz ela. O tempo, porém, virou um vendaval, e o fato de não poder mais dedicar-se a esse trabalho voluntário a deixa triste, por vezes irritada. Ela nem queria tocar no assunto. Mas esta blogueira insistiu. Apesar de interrompida, a história da mulher da biblioteca comunitária existe e fez a diferença na vida de muitos. Não há que não se lembre do bom livro lido na infância, nem adulto que, ao mergulhar na leitura depois de grande, não sonhe de olhos bem abertos com os personagens das páginas amareladas e suas aventuras.

Deusa não quis se deixar fotografar. Não há sorriso para estampar. Nem a tristeza precisa aparecer. Bem por isso, como acontece na leitura de um livro, fica aqui ao leitor deste texto a tarefa de imaginar como é Deusa e sua biblioteca, bem como a rua estreita do Areião que vê dia a dia um tijolo a mais sendo assentado na casa que no futuro, quem sabe, pode voltar a abrigar o acervo de mais de centena de exemplares.

3 comentários:

  1. Lindo esse texto e mais ainda essa história de vida!! Parabéns Lu!!

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  2. Parabéns Mãe a senhora é uma Guerreira tenho muito orgulho de ser sua Filha.

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  3. Parabéns Mãe a senhora é uma Guerreira tenho muito orgulho de ser sua Filha.

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