terça-feira, 24 de abril de 2012

De repente, uma carta para Lula

Certa vez, Clarisse Mendonça Aun, de 85 anos, escreveu uma carta para o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Relutou um pouco de início, mas, como viu que não havia saída, se rendeu ao papel e à caneta. Melhor dizendo, se rendeu ao pedido da pessoa que a procurou no programa Escreve Cartas do Poupatempo, em São Paulo, porque queria oferecer a Lula uma fazenda que tinha no interior do Estado. “Eu ainda perguntei para ela: ‘porque a senhora não vai a uma imobiliária? A senhora venderia mais fácil’. ‘Não, não. Só ele é que pode comprar essa fazenda’, ela disse”, relembra a aposentada.


Clarisse Aun mostra orgulhosa o crachá de voluntária no Poupatempo.

Do Palácio do Planalto veio a resposta, informando que Lula não tinha interesse pela propriedade. Mas a mulher não se deu por vencida e voltou até Clarisse, lhe pedindo que nova carta fosse escrita e enviada, insistindo na oferta. “Talvez ela até soubesse ler e escrever, mas não fosse capaz de redigir uma carta para o presidente”, supõe Clarisse, justificando o pedido da mulher. O programa Escreve Cartas, que em outubro do ano passado completou 10 anos, atende em sua maioria pessoas que não sabem ler nem escrever e querem entrar em contato com um parente distante ou precisam preencher um formulário, mas também serve aqueles que querem uma carta feita no computador, precisam de ajuda para criar um currículo ou mesmo que não têm muita agilidade com a escrita. De 2001 até novembro, foram 266,5 mil atendimentos, segundo contagem do Poupatempo.

Mãe de dois filhos e avó de um neto de pouco mais de um ano, Clarisse mora sozinha (o marido morreu há 33 anos) no Jardim Marajoara, zona sul de São Paulo. É voluntária no programa desde sua criação. Ficou sabendo por uma amiga que seriam abertas vagas para voluntários (o que ocorre duas vezes por ano), se inscreveu, fez uma carta para um “amigo imaginário” conforme pedia o teste aplicado pelo Poupatempo e foi aprovada. Desde então, uma vez por semana ela dá plantão da unidade de Santo Amaro, vindo a ouvir as mais inusitadas das histórias, alegres ou tristes, engraçadas ou incompreensíveis.

A maioria das cartas, segundo ela, é endereçada a programas de TV como os do Gugu Liberato e do Luciano Huck, com quadros que oferecem desde a reforma do carro ou da casa até o retorno à terra natal. “Eles ficam entusiasmados e vêm aqui para pedir para escrever. Ficam felizes quando põem a carta no correio, achando que dali a pouco vão ser atendidos”, conta Clarisse, que já intermediou pedidos de instrumentos musicais, emprego e ajuda financeira. “Já teve carta feita aqui que foi sorteada, naquele ‘De Volta para Minha Terra’ (quadro do Gugu). E ele (o sorteado) veio aqui para se despedir e agradecer”, conta.

Clarisse escreve, mas, sem desanimar o remetente, explica a realidade. “Eu falo para a pessoa: ‘pede ajuda a Deus, que eu vou pedir do meu lado, para a gente conseguir, mas saiba que é difícil’”.

Assumidamente chorona, a aposentada, que trabalhou durante muitos anos como secretária, diz que não raras vezes precisa se esforçar para não chorar no exercício desta sua função. Mas nem sempre consegue. Anos atrás, uma senhora a procurou para escrever uma carta ao filho que estava preso, informando que o irmão dele havia morrido de diabetes. “Uma pessoa muito humilde, mas muito sábia. Do jeito que ela foi falando, foi me emocionando. E eu não resisti”, relembra Clarisse, acreditando ter sido esta, talvez, a mais triste de todas as cartas escritas. “A gente tem que se controlar. Não fica muito bonito molhar o papel da carta com as lágrimas”, conta, hoje em dia entre risos.

Situações parecidas foram vivenciadas pela funcionária pública aposentada Márcia Sargueiro Calixto, de 58 anos, que mora na região do Aricanduva, zona leste de São Paulo. Certa vez, uma mulher esteve na unidade de Itaquera, onde ela é voluntária, pedindo para escrever uma carta para o marido preso. E enquanto uma colega atendia a mulher, a filha desta, sentada em frente à Márcia, lhe pediu para que outra carta fosse escrita, só que para um programa de TV. Ela queria pedir que reformassem a casa da mãe e, durante a reforma, lhe fosse concedido um “Dia de Princesa” (outro quadro comum em programas televisivos nos dias de hoje).

Márcia Calixto na mesa onde atende voluntariamente.

Era a forma que a menina, que apesar da pouca idade também já era mãe, achou para pedir perdão pelos desgostos que já havia dado à mãe. “A chance de sua carta ser escolhida é pequena, mas você pode pedir desculpas para ela aqui”, sugeriu a voluntária. “Você dita, eu escrevo e a leio em para ela. Você fica só ouvindo”. A moça aceitou a sugestão e assim foi feito, logo depois de a carta para o marido preso ter sido concluída. Ao final do pedido de perdão, as duas se abraçaram e começaram a chorar. Márcia também não se conteve.

Em outra ocasião, a voluntária foi surpreendida por um homem com seus mais de 60 anos que queria escrever uma carta para a vizinha, a quem estava paquerando. Ele trazia consigo um papel todo amassado, contando que nele havia um poema. “Alguém deixou a folha cair no ônibus, ele tentou avisar, mas a pessoa desceu rapidamente e ele acabou ficando com o papel”, explica Márcia. Na carta solicitada, ele pedia a vizinha em namoro, citando o poema achado no chão do ônibus. Dizia que era uma oportunidade de recomeçaram a vida, já que ambos eram viúvos e estavam sozinhos. “A ideia era muito bonita, mas ele não voltou para contar o resultado”, lamenta.

Analfabetismo e voluntariado

Clarisse e Márcia optaram pelo voluntariado por dois motivos. Primeiro, para terem uma atividade dentro da vida de aposentadas, mesmo que por poucas horas na semana. Clarisse se candidatou ao Escreve Cartas muitos anos depois da aposentadoria, mas Márcia o fez mesmo antes de deixar o trabalho no Estado. Tinha medo de não ter o que fazer além de cuidar da casa. Então, se apressou.

Mas o segundo motivo que moveu a ambas foi o de poder ajudar quem, ao contrário delas, nunca teve a oportunidade de lidar com as letras. No país, 9,6% da população são analfabetos, segundo dados divulgados em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“O analfabetismo é muito grande ainda”, constata Clarisse diante de sua experiência de 10 anos no programa. “Tem muita mulher que vem aqui e conta a vida, diz que teve que ir trabalhar na roça cedo e não pôde estudar”. E além de ajudar escrevendo carta ou preenchendo algum formulário, a aposentada dá um empurrãozinho a mais. “A gente aconselha que eles voltem a estudar. Nunca é tarde. Às vezes a pessoa diz que é velho e tem vergonha. Não tem que ter vergonha”, afirma.

Depois de tantos anos no Escreve, Clarisse hoje ocupa o cargo de coordenadora do plantão das quartas-feiras. “Eu adoro ficar aqui, não falto, só mesmo se tiver uma labirintite. Do contrário, não falto nunca, porque faz muito bem pra mim. É muito pouco o que eu faço. Quem sabe não poderia fazer mais. Mas cada um fazendo um pouquinho, junta um poucão”, diz a aposentada, que também já foi voluntária da Apae e hoje em dia também dá uma mãozinha na Santa Casa de Santo Amaro, como vendedora de um bazar de artigos doados.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Um lugar chamado Defunto

Apesar de figurar no mapa da Google, Defunto, no Ceará, é praticamente um desconhecido, inclusive dos cearenses. Para chegar até ele, só mesmo seguindo a lógica e a instituição, respectivamente, porque a cada 100 pessoas consultadas, apenas uma sabe onde fica. Pela lógica, guiando-se pelo mapa online, sabe-se que o caminho a partir de Juazeiro do Norte é pela CE-292. Pela intuição, segue-se a rumo depois de se deixar a rodovia, tendo em mente que existe uma tal de Lagoinha no meio do caminho. Nem quem mora a menos de 10 km de Defunto tem conhecimento do lugar. Como pode?

A situação tem cabimento porque Defunto não é mais Defunto. Ou seria melhor dizer que, a bem da verdade, nunca foi tão defunto como é agora. O povoado, que levou durante anos o nome de Defunto, há um bom tempo se chama Bom Jardim. Sendo assim, Defunto está morto e enterrado.

Claro que, para quem mora em Bom Jardim, Defunto não foi de todo esquecido. Alguns de seus moradores pouco conhecem da história que originou o nome, mas sabem que até documento de propriedades de terra chegaram a ser lavrados com esse nome. Seu Luiz João Feitosa Cavalcante, 46 anos, de coração metade palmeirense, metade flamenguista, só sabe que um cabra morreu pelas bandas da sua casa e que, depois disso, Bom Jardim virou Defunto – embora ele não saiba se antes de ser Defunto, Bom Jardim já era Bom Jardim. O tal do assassinato fora há muito tempo e ele nem por lá morava.

Luiz Cavalcante, meio flamenguista, meio palmeirense, na varanda de casa.

Com quase o dobro da idade de Luiz, seu José Expedito - também de sobrenome Cavalcante, apesar da ausência de parentesco - sabe um pouco mais da história, contada por ele com ar de mistério. Segundo contou seu pai, Pedro Cavalcante, que faleceu aos 96 anos, a briga que deixou um morto ocorreu praticamente dentro do seu quintal. A que tudo indica, ninguém viu o ocorrido, muito menos sabe ao certo o motivo da discussão. Mas Expedito, de 84 anos, diz que gente bem anterior a seu próprio pai teria visto pegadas de dois homens perto de uma árvore das grandes e que apenas o dono de um par delas foi encontrado, já sem vida. “As pegadas vinham lá das bandas do Maranhão. Devia ser retirante”, acredita Expedito com base no disse-que-me-disse que se arrasta por anos.

Seu Expedito e a árvore sob a qual ocorreu a morte.

Localizado no município de Salitre, Defunto está a cerca de 30 km da divisa do Ceará com o Piauí, dentro da Chapada do Araripe. A partir da CE-292, dois caminhos são possíveis para se chegar a Defunto. Um deles é entrando estrada de terra adentro, passando por Lagoinha e Lagoa dos Paulinos – onde se encontra a agência de relacionamento do Digníssimo Cícero Alves (história contada no post anterior). O outro caminho fica um pouco mais adiante, passando apenas por algumas propriedades esparsas. Neste caso, o percurso em meio à poeira é bem mais curto, feito em menos de meia hora.

No entorno da única estrada de Defunto, estão localizadas nada mais que 15 casas, algumas delas desabitadas. A de seu Luiz está entre as primeiras. A de Expedito, entre as últimas. O nome da estrada? “Sei não. É estrada mesmo”, diz a mulher de Luiz, Maria Helena Alves de Alencar, que em janeiro, quando desta entrevista, estava grávida do sexto filho. E tomara que seja menina, porque a pretensão de ambos é formar o terceiro casal que falta (eles já tinham três homens e duas mulheres). E se a menina não vier? As tentativas continuarão? A mulher diz que não, mas estando ela no auge dos seus 36 anos, não seria nada absurdo duvidar da possibilidade levantada.

A única estrada de Defunto, onde os animais circulam tranquilamente.

Maria Helena diz que a vida em Defunto é difícil. Tanto pela distância da cidade, como pela falta de emprego. A família vive da renda que o marido tira com a venda de feijão e outros vegetais – que também servem para compor a mesa diariamente – e da Bolsa Família recebida pela frequência das crianças à escola. Quatro delas estão em idade escolar.

Seu Expedito também vive na simplicidade, mas, ao contrário de Luiz e Maria Helena, já tem os filhos criados, consegue desfrutar de um pouco mais de fartura na geladeira, esta bem ajeitada em uma cozinha de paredes enfeitadas por panelas muito bem areadas, penduradas a um palmo de um pôster da cantora sertaneja Sula Miranda. “Minha filha é quem gosta”, explica Francisca Aristides de Cavalcante, 82, a dona da casa. Há 60 anos casada com seu Expedito, dona Francisca ainda se diz uma apaixonada. “Ele é meu marido, meu pai, meu filho, meu tudo”, se declara. E, só para registrar, na sala também tem foto de gente famosa: Ísis Valverde está presa do lado de dentro da estante, em uma porta de vidro.

Dona Francisca em sua cozinha, com suas panelas muito bem areadas.

Foto de Ísis Valverde na estante da sala de Expedito e dona Francisca.

E assim, um cuidando do outro – ela, com uma hérnia operada em 2006 em São Paulo, quando andou pela primeira vez de avião, e ele, com uma pressão alta que o obriga a tomar três remédios diferentes por dia -, Expedito e Francisca levam a vida no isolamento de Defunto numa alegria de dar inveja a quem mora nas grandes conglomerações e em meio a dezenas de atrativos e divertimentos. O mesmo se pode dizer de Luiz e Maria Helena, apesar de eles ainda esperarem que a situação melhore um pouco no lugar aonde sequer chega correspondência e onde a internet, que permite agora aos leitores do Terra das Boas Ideias conhecerem essa história, é uma praticamente desconhecida.

Maria e Luiz, os pais de um sexteto alimentado pela roça e o Bolsa Família.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Agência de relacionamentos do sertão


A agência de relacionamento de Cícero Alves, no Ceará.

Em Lagoa dos Paulinos, povoado do município de Salitre-CE, o Facebook de Mark Zuckerberg é praticamente um desconhecido. Depois das festas, as fotos cheias de pose não pipocam pela rede. Nem dá para “cubar” (fuçar e descobrir, na gíria nordestina), de forma anônima a partir de um computador, se a moça bonita é solteira ou comprometida, quantos anos ela tem e o que gosta de fazer nas horas livres. Mas desembolsando apenas R$ 10 é possível não só escarafunchar a vida da pessoa, como conseguir um encontro com ela para uma conversa no maior estilo do extinto “Em Nome do Amor”, de Silvio Santos, ou do “Vai dar Namoro”, de Rodrigo Faro.

No distrito que fica a aproximadamente 140 km de Crato, terra natal do padre mais famoso do Brasil, outro Cícero, o Alves, autoproclamado Digníssimo, criou a Agência de Relacionamento Correio do Amor. Da inauguração, em agosto do ano passado, até o dia denta entrevista, em janeiro, no caderno dos cadastros somente o dele estava estampado, para servir de modelo para os futuros clientes, que haviam de se achegar. “Eu acho que um dia pode dar certo”, diz Cícero Alves, em cuja mesa de trabalho existe um aparelho telefônico fixo sem linha, que um dia, quando passar a funcionar, o ajudará no contato com cliente e seus pretendentes. “(A agência) ainda não tem telefone, mas vai ter”, promete.
                                                                                                                                                          
No perfil de referência, Cícero se apresenta como um homem de 32 anos “totalmente verdadeiro”, que procura mulher rica, carinhosa, bonita, fiel e filha única. Mas que fique claro: são todos quesitos de preferência, não se trata de exigência.

Cícero Alves e seu perfil, na agência.

Fazendo jus ao adjetivo que o define, Cícero diz com naturalidade querer uma companheira que seja ao mesmo tempo sua empresária. “Tenho muitos sonhos, acima até da normalidade, e quero alguém para realizar meus sonhos com o dinheiro dela, em benefício dela também”.

Não é golpe do baú. Apenas uma troca, que não poderia se concretizar escolhendo ele uma mulher de poucos recursos. “Se eu falar que quero uma simplesinha, não é do meu gosto. Até poderia ser, mas não tenho condições de sustentar”.

Sobre a opção por filha única, Cícero argumenta que é para fugir do risco que as cunhadas podem oferecer. “Esbarra na questão da fidelidade. Às vezes acontece de eu me interessar por ela e ela por mim”, explica. É melhor evitar a tentação.

A agência toma conta do tempo de Cícero. Tirando o dia em que ele tem que ir a Salitre para receber o beneficio do INSS – é aposentado por invalidez devido a uma deficiência visual -, em mais nenhum outro a jornada escapa das 12 horas. Almoça rapidinho na casa da mãe, a 200 metros da agência, e, não raro, passa a noite no local de trabalho, pensando e repensando estratégias.

Quando veicula anúncio na rádio, algum ou outro põe as caras na porta e pergunta como funciona o esquema. Mas o convite à inscrição é sempre respondido com um “deixa alguém se inscrever primeiro que então eu venho”.

Cícero diz que o problema dos solteiros da região não é a timidez, mas a ineficácia das cantadas, muito fracas. O “pode ser ou tá difícil”, segundo ele, ainda reina por lá. “Em vez de aproximar, a pessoa só afasta a moça”, diz ele com conhecimento de causa. Há muitos anos é o intermediador dos casais interessados em relacionamento sério, mas sem jeito para iniciar um contato. Comunicador, cantador de bingo, sempre foi procurado para entregar recadinhos apaixonados, a começar por um tio, que gostava de uma morena, mas não sabia como agilizar o processo. Hoje, tio Francisco é casado com a amada e tem uma porção de filhos. “Levou um tempo, mas a intermediação deu certo”, conta.

Assim que a agência engrenar, Cícero pretende colocar em prática outro projeto: construir a Casa Sagrada de Gratificação do Digno, para receber os adeptos (que ainda estão por vir) da religião que ele criou, a Prática do Bem. O dinheiro para as obras virá de atos como o casamento que ele quer oferecer para os casais que se formarem a partir da Correio do Amor.

“Quero unir as pessoas e acredito que tenho essa graça de estar abençoando os casais”, diz. Bênção que estaria também disponível a casais já unidos, especialmente os amancebados, ditos pelo povo “amaldiçoados” e condenados a se transformarem em animais por não viverem uma relação tutelada pelo catolicismo. “Minha bênção é uma proteção. Não quero que mais ninguém vire bicho”.

Um dos nove irmãos de Cícero, na ausência deste, se atreveu classificar o negócio como uma furada. Talvez os moradores de Lagoa dos Paulinos, povoado que possui menos de uma dezena de ruas e umas 50 casas, compartilhem da mesma opinião, já que ninguém, até janeiro, pelo menos, ainda havia se atrevido a investir os R$ 10 pelo serviço do rapaz. E Cícero, mesmo que aparentemente desconfiando do descrédito que lhe é atribuído, só quer é saber de seguir adiante com seu empreendimento, num entusiasmo de fazer inveja a muito empresário de sucesso.