A situação tem cabimento porque Defunto não é mais
Defunto. Ou seria melhor dizer que, a bem da verdade, nunca foi tão defunto
como é agora. O povoado, que levou durante anos o nome de Defunto, há um bom
tempo se chama Bom Jardim. Sendo assim, Defunto está morto e enterrado.
Claro que, para quem mora em Bom Jardim, Defunto
não foi de todo esquecido. Alguns de seus moradores pouco conhecem da história
que originou o nome, mas sabem que até documento de propriedades de terra
chegaram a ser lavrados com esse nome. Seu Luiz João Feitosa Cavalcante, 46
anos, de coração metade palmeirense, metade flamenguista, só sabe que um cabra
morreu pelas bandas da sua casa e que, depois disso, Bom Jardim virou Defunto –
embora ele não saiba se antes de ser Defunto, Bom Jardim já era Bom Jardim.
O tal do assassinato fora há muito tempo e ele nem por lá morava.
Luiz Cavalcante, meio flamenguista, meio palmeirense, na varanda de casa. |
Com quase o dobro da idade de Luiz, seu José
Expedito - também de sobrenome Cavalcante, apesar da ausência de parentesco - sabe um pouco mais da história, contada por ele com ar de
mistério. Segundo contou seu pai, Pedro Cavalcante, que faleceu aos 96 anos, a briga
que deixou um morto ocorreu praticamente dentro do seu quintal. A que tudo
indica, ninguém viu o ocorrido, muito menos sabe ao certo o motivo da
discussão. Mas Expedito, de 84 anos, diz que gente bem anterior a seu próprio pai teria
visto pegadas de dois homens perto de uma árvore das grandes e que apenas o
dono de um par delas foi encontrado, já sem vida. “As pegadas vinham lá das
bandas do Maranhão. Devia ser retirante”, acredita Expedito com base no
disse-que-me-disse que se arrasta por anos.
Seu Expedito e a árvore sob a qual ocorreu a morte. |
Localizado no município de Salitre, Defunto está a cerca de 30 km da divisa do Ceará
com o Piauí, dentro da Chapada do Araripe. A partir da CE-292, dois caminhos
são possíveis para se chegar a Defunto. Um deles é entrando estrada de terra
adentro, passando por Lagoinha e Lagoa dos Paulinos – onde se encontra a
agência de relacionamento do Digníssimo Cícero Alves (história contada no post
anterior). O outro caminho fica um pouco mais adiante, passando apenas por
algumas propriedades esparsas. Neste caso, o percurso em meio à poeira é bem
mais curto, feito em menos de meia hora.
No entorno da única estrada de Defunto, estão
localizadas nada mais que 15 casas, algumas delas desabitadas. A de seu Luiz
está entre as primeiras. A de Expedito, entre as últimas. O nome da estrada?
“Sei não. É estrada mesmo”, diz a mulher de Luiz, Maria Helena Alves de
Alencar, que em janeiro, quando desta entrevista, estava grávida do sexto
filho. E tomara que seja menina, porque a pretensão de ambos é formar o
terceiro casal que falta (eles já tinham três homens e duas mulheres). E se a
menina não vier? As tentativas continuarão? A mulher diz que não, mas estando
ela no auge dos seus 36 anos, não seria nada absurdo duvidar da possibilidade
levantada.
A única estrada de Defunto, onde os animais circulam tranquilamente. |
Maria Helena diz que a vida em Defunto é difícil. Tanto
pela distância da cidade, como pela falta de emprego. A família vive da renda
que o marido tira com a venda de feijão e outros vegetais – que também servem
para compor a mesa diariamente – e da Bolsa Família recebida pela frequência
das crianças à escola. Quatro delas estão em idade escolar.
Seu Expedito também vive na simplicidade, mas, ao
contrário de Luiz e Maria Helena, já tem os filhos criados, consegue desfrutar
de um pouco mais de fartura na geladeira, esta bem ajeitada em uma cozinha de
paredes enfeitadas por panelas muito bem areadas, penduradas a um palmo de um pôster
da cantora sertaneja Sula Miranda. “Minha filha é quem gosta”, explica Francisca
Aristides de Cavalcante, 82, a dona da casa. Há 60 anos casada com seu
Expedito, dona Francisca ainda se diz uma apaixonada. “Ele é meu marido, meu
pai, meu filho, meu tudo”, se declara. E, só para registrar, na sala também tem foto de gente famosa: Ísis Valverde está presa do lado de dentro da estante, em uma porta de vidro.
Dona Francisca em sua cozinha, com suas panelas muito bem areadas. |
Foto de Ísis Valverde na estante da sala de Expedito e dona Francisca. |
E assim, um cuidando do outro – ela, com uma hérnia
operada em 2006 em São Paulo, quando andou pela primeira vez de avião, e ele,
com uma pressão alta que o obriga a tomar três remédios diferentes por dia -, Expedito
e Francisca levam a vida no isolamento de Defunto numa alegria de dar inveja a quem
mora nas grandes conglomerações e em meio a dezenas de atrativos e
divertimentos. O mesmo se pode dizer de Luiz e Maria Helena, apesar de eles
ainda esperarem que a situação melhore um pouco no lugar aonde sequer chega correspondência e onde a internet, que permite agora aos leitores do Terra das Boas Ideias conhecerem
essa história, é uma praticamente desconhecida.
Maria e Luiz, os pais de um sexteto alimentado pela roça e o Bolsa Família. |
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