terça-feira, 24 de abril de 2012

De repente, uma carta para Lula

Certa vez, Clarisse Mendonça Aun, de 85 anos, escreveu uma carta para o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Relutou um pouco de início, mas, como viu que não havia saída, se rendeu ao papel e à caneta. Melhor dizendo, se rendeu ao pedido da pessoa que a procurou no programa Escreve Cartas do Poupatempo, em São Paulo, porque queria oferecer a Lula uma fazenda que tinha no interior do Estado. “Eu ainda perguntei para ela: ‘porque a senhora não vai a uma imobiliária? A senhora venderia mais fácil’. ‘Não, não. Só ele é que pode comprar essa fazenda’, ela disse”, relembra a aposentada.


Clarisse Aun mostra orgulhosa o crachá de voluntária no Poupatempo.

Do Palácio do Planalto veio a resposta, informando que Lula não tinha interesse pela propriedade. Mas a mulher não se deu por vencida e voltou até Clarisse, lhe pedindo que nova carta fosse escrita e enviada, insistindo na oferta. “Talvez ela até soubesse ler e escrever, mas não fosse capaz de redigir uma carta para o presidente”, supõe Clarisse, justificando o pedido da mulher. O programa Escreve Cartas, que em outubro do ano passado completou 10 anos, atende em sua maioria pessoas que não sabem ler nem escrever e querem entrar em contato com um parente distante ou precisam preencher um formulário, mas também serve aqueles que querem uma carta feita no computador, precisam de ajuda para criar um currículo ou mesmo que não têm muita agilidade com a escrita. De 2001 até novembro, foram 266,5 mil atendimentos, segundo contagem do Poupatempo.

Mãe de dois filhos e avó de um neto de pouco mais de um ano, Clarisse mora sozinha (o marido morreu há 33 anos) no Jardim Marajoara, zona sul de São Paulo. É voluntária no programa desde sua criação. Ficou sabendo por uma amiga que seriam abertas vagas para voluntários (o que ocorre duas vezes por ano), se inscreveu, fez uma carta para um “amigo imaginário” conforme pedia o teste aplicado pelo Poupatempo e foi aprovada. Desde então, uma vez por semana ela dá plantão da unidade de Santo Amaro, vindo a ouvir as mais inusitadas das histórias, alegres ou tristes, engraçadas ou incompreensíveis.

A maioria das cartas, segundo ela, é endereçada a programas de TV como os do Gugu Liberato e do Luciano Huck, com quadros que oferecem desde a reforma do carro ou da casa até o retorno à terra natal. “Eles ficam entusiasmados e vêm aqui para pedir para escrever. Ficam felizes quando põem a carta no correio, achando que dali a pouco vão ser atendidos”, conta Clarisse, que já intermediou pedidos de instrumentos musicais, emprego e ajuda financeira. “Já teve carta feita aqui que foi sorteada, naquele ‘De Volta para Minha Terra’ (quadro do Gugu). E ele (o sorteado) veio aqui para se despedir e agradecer”, conta.

Clarisse escreve, mas, sem desanimar o remetente, explica a realidade. “Eu falo para a pessoa: ‘pede ajuda a Deus, que eu vou pedir do meu lado, para a gente conseguir, mas saiba que é difícil’”.

Assumidamente chorona, a aposentada, que trabalhou durante muitos anos como secretária, diz que não raras vezes precisa se esforçar para não chorar no exercício desta sua função. Mas nem sempre consegue. Anos atrás, uma senhora a procurou para escrever uma carta ao filho que estava preso, informando que o irmão dele havia morrido de diabetes. “Uma pessoa muito humilde, mas muito sábia. Do jeito que ela foi falando, foi me emocionando. E eu não resisti”, relembra Clarisse, acreditando ter sido esta, talvez, a mais triste de todas as cartas escritas. “A gente tem que se controlar. Não fica muito bonito molhar o papel da carta com as lágrimas”, conta, hoje em dia entre risos.

Situações parecidas foram vivenciadas pela funcionária pública aposentada Márcia Sargueiro Calixto, de 58 anos, que mora na região do Aricanduva, zona leste de São Paulo. Certa vez, uma mulher esteve na unidade de Itaquera, onde ela é voluntária, pedindo para escrever uma carta para o marido preso. E enquanto uma colega atendia a mulher, a filha desta, sentada em frente à Márcia, lhe pediu para que outra carta fosse escrita, só que para um programa de TV. Ela queria pedir que reformassem a casa da mãe e, durante a reforma, lhe fosse concedido um “Dia de Princesa” (outro quadro comum em programas televisivos nos dias de hoje).

Márcia Calixto na mesa onde atende voluntariamente.

Era a forma que a menina, que apesar da pouca idade também já era mãe, achou para pedir perdão pelos desgostos que já havia dado à mãe. “A chance de sua carta ser escolhida é pequena, mas você pode pedir desculpas para ela aqui”, sugeriu a voluntária. “Você dita, eu escrevo e a leio em para ela. Você fica só ouvindo”. A moça aceitou a sugestão e assim foi feito, logo depois de a carta para o marido preso ter sido concluída. Ao final do pedido de perdão, as duas se abraçaram e começaram a chorar. Márcia também não se conteve.

Em outra ocasião, a voluntária foi surpreendida por um homem com seus mais de 60 anos que queria escrever uma carta para a vizinha, a quem estava paquerando. Ele trazia consigo um papel todo amassado, contando que nele havia um poema. “Alguém deixou a folha cair no ônibus, ele tentou avisar, mas a pessoa desceu rapidamente e ele acabou ficando com o papel”, explica Márcia. Na carta solicitada, ele pedia a vizinha em namoro, citando o poema achado no chão do ônibus. Dizia que era uma oportunidade de recomeçaram a vida, já que ambos eram viúvos e estavam sozinhos. “A ideia era muito bonita, mas ele não voltou para contar o resultado”, lamenta.

Analfabetismo e voluntariado

Clarisse e Márcia optaram pelo voluntariado por dois motivos. Primeiro, para terem uma atividade dentro da vida de aposentadas, mesmo que por poucas horas na semana. Clarisse se candidatou ao Escreve Cartas muitos anos depois da aposentadoria, mas Márcia o fez mesmo antes de deixar o trabalho no Estado. Tinha medo de não ter o que fazer além de cuidar da casa. Então, se apressou.

Mas o segundo motivo que moveu a ambas foi o de poder ajudar quem, ao contrário delas, nunca teve a oportunidade de lidar com as letras. No país, 9,6% da população são analfabetos, segundo dados divulgados em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“O analfabetismo é muito grande ainda”, constata Clarisse diante de sua experiência de 10 anos no programa. “Tem muita mulher que vem aqui e conta a vida, diz que teve que ir trabalhar na roça cedo e não pôde estudar”. E além de ajudar escrevendo carta ou preenchendo algum formulário, a aposentada dá um empurrãozinho a mais. “A gente aconselha que eles voltem a estudar. Nunca é tarde. Às vezes a pessoa diz que é velho e tem vergonha. Não tem que ter vergonha”, afirma.

Depois de tantos anos no Escreve, Clarisse hoje ocupa o cargo de coordenadora do plantão das quartas-feiras. “Eu adoro ficar aqui, não falto, só mesmo se tiver uma labirintite. Do contrário, não falto nunca, porque faz muito bem pra mim. É muito pouco o que eu faço. Quem sabe não poderia fazer mais. Mas cada um fazendo um pouquinho, junta um poucão”, diz a aposentada, que também já foi voluntária da Apae e hoje em dia também dá uma mãozinha na Santa Casa de Santo Amaro, como vendedora de um bazar de artigos doados.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Um lugar chamado Defunto

Apesar de figurar no mapa da Google, Defunto, no Ceará, é praticamente um desconhecido, inclusive dos cearenses. Para chegar até ele, só mesmo seguindo a lógica e a instituição, respectivamente, porque a cada 100 pessoas consultadas, apenas uma sabe onde fica. Pela lógica, guiando-se pelo mapa online, sabe-se que o caminho a partir de Juazeiro do Norte é pela CE-292. Pela intuição, segue-se a rumo depois de se deixar a rodovia, tendo em mente que existe uma tal de Lagoinha no meio do caminho. Nem quem mora a menos de 10 km de Defunto tem conhecimento do lugar. Como pode?

A situação tem cabimento porque Defunto não é mais Defunto. Ou seria melhor dizer que, a bem da verdade, nunca foi tão defunto como é agora. O povoado, que levou durante anos o nome de Defunto, há um bom tempo se chama Bom Jardim. Sendo assim, Defunto está morto e enterrado.

Claro que, para quem mora em Bom Jardim, Defunto não foi de todo esquecido. Alguns de seus moradores pouco conhecem da história que originou o nome, mas sabem que até documento de propriedades de terra chegaram a ser lavrados com esse nome. Seu Luiz João Feitosa Cavalcante, 46 anos, de coração metade palmeirense, metade flamenguista, só sabe que um cabra morreu pelas bandas da sua casa e que, depois disso, Bom Jardim virou Defunto – embora ele não saiba se antes de ser Defunto, Bom Jardim já era Bom Jardim. O tal do assassinato fora há muito tempo e ele nem por lá morava.

Luiz Cavalcante, meio flamenguista, meio palmeirense, na varanda de casa.

Com quase o dobro da idade de Luiz, seu José Expedito - também de sobrenome Cavalcante, apesar da ausência de parentesco - sabe um pouco mais da história, contada por ele com ar de mistério. Segundo contou seu pai, Pedro Cavalcante, que faleceu aos 96 anos, a briga que deixou um morto ocorreu praticamente dentro do seu quintal. A que tudo indica, ninguém viu o ocorrido, muito menos sabe ao certo o motivo da discussão. Mas Expedito, de 84 anos, diz que gente bem anterior a seu próprio pai teria visto pegadas de dois homens perto de uma árvore das grandes e que apenas o dono de um par delas foi encontrado, já sem vida. “As pegadas vinham lá das bandas do Maranhão. Devia ser retirante”, acredita Expedito com base no disse-que-me-disse que se arrasta por anos.

Seu Expedito e a árvore sob a qual ocorreu a morte.

Localizado no município de Salitre, Defunto está a cerca de 30 km da divisa do Ceará com o Piauí, dentro da Chapada do Araripe. A partir da CE-292, dois caminhos são possíveis para se chegar a Defunto. Um deles é entrando estrada de terra adentro, passando por Lagoinha e Lagoa dos Paulinos – onde se encontra a agência de relacionamento do Digníssimo Cícero Alves (história contada no post anterior). O outro caminho fica um pouco mais adiante, passando apenas por algumas propriedades esparsas. Neste caso, o percurso em meio à poeira é bem mais curto, feito em menos de meia hora.

No entorno da única estrada de Defunto, estão localizadas nada mais que 15 casas, algumas delas desabitadas. A de seu Luiz está entre as primeiras. A de Expedito, entre as últimas. O nome da estrada? “Sei não. É estrada mesmo”, diz a mulher de Luiz, Maria Helena Alves de Alencar, que em janeiro, quando desta entrevista, estava grávida do sexto filho. E tomara que seja menina, porque a pretensão de ambos é formar o terceiro casal que falta (eles já tinham três homens e duas mulheres). E se a menina não vier? As tentativas continuarão? A mulher diz que não, mas estando ela no auge dos seus 36 anos, não seria nada absurdo duvidar da possibilidade levantada.

A única estrada de Defunto, onde os animais circulam tranquilamente.

Maria Helena diz que a vida em Defunto é difícil. Tanto pela distância da cidade, como pela falta de emprego. A família vive da renda que o marido tira com a venda de feijão e outros vegetais – que também servem para compor a mesa diariamente – e da Bolsa Família recebida pela frequência das crianças à escola. Quatro delas estão em idade escolar.

Seu Expedito também vive na simplicidade, mas, ao contrário de Luiz e Maria Helena, já tem os filhos criados, consegue desfrutar de um pouco mais de fartura na geladeira, esta bem ajeitada em uma cozinha de paredes enfeitadas por panelas muito bem areadas, penduradas a um palmo de um pôster da cantora sertaneja Sula Miranda. “Minha filha é quem gosta”, explica Francisca Aristides de Cavalcante, 82, a dona da casa. Há 60 anos casada com seu Expedito, dona Francisca ainda se diz uma apaixonada. “Ele é meu marido, meu pai, meu filho, meu tudo”, se declara. E, só para registrar, na sala também tem foto de gente famosa: Ísis Valverde está presa do lado de dentro da estante, em uma porta de vidro.

Dona Francisca em sua cozinha, com suas panelas muito bem areadas.

Foto de Ísis Valverde na estante da sala de Expedito e dona Francisca.

E assim, um cuidando do outro – ela, com uma hérnia operada em 2006 em São Paulo, quando andou pela primeira vez de avião, e ele, com uma pressão alta que o obriga a tomar três remédios diferentes por dia -, Expedito e Francisca levam a vida no isolamento de Defunto numa alegria de dar inveja a quem mora nas grandes conglomerações e em meio a dezenas de atrativos e divertimentos. O mesmo se pode dizer de Luiz e Maria Helena, apesar de eles ainda esperarem que a situação melhore um pouco no lugar aonde sequer chega correspondência e onde a internet, que permite agora aos leitores do Terra das Boas Ideias conhecerem essa história, é uma praticamente desconhecida.

Maria e Luiz, os pais de um sexteto alimentado pela roça e o Bolsa Família.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Agência de relacionamentos do sertão


A agência de relacionamento de Cícero Alves, no Ceará.

Em Lagoa dos Paulinos, povoado do município de Salitre-CE, o Facebook de Mark Zuckerberg é praticamente um desconhecido. Depois das festas, as fotos cheias de pose não pipocam pela rede. Nem dá para “cubar” (fuçar e descobrir, na gíria nordestina), de forma anônima a partir de um computador, se a moça bonita é solteira ou comprometida, quantos anos ela tem e o que gosta de fazer nas horas livres. Mas desembolsando apenas R$ 10 é possível não só escarafunchar a vida da pessoa, como conseguir um encontro com ela para uma conversa no maior estilo do extinto “Em Nome do Amor”, de Silvio Santos, ou do “Vai dar Namoro”, de Rodrigo Faro.

No distrito que fica a aproximadamente 140 km de Crato, terra natal do padre mais famoso do Brasil, outro Cícero, o Alves, autoproclamado Digníssimo, criou a Agência de Relacionamento Correio do Amor. Da inauguração, em agosto do ano passado, até o dia denta entrevista, em janeiro, no caderno dos cadastros somente o dele estava estampado, para servir de modelo para os futuros clientes, que haviam de se achegar. “Eu acho que um dia pode dar certo”, diz Cícero Alves, em cuja mesa de trabalho existe um aparelho telefônico fixo sem linha, que um dia, quando passar a funcionar, o ajudará no contato com cliente e seus pretendentes. “(A agência) ainda não tem telefone, mas vai ter”, promete.
                                                                                                                                                          
No perfil de referência, Cícero se apresenta como um homem de 32 anos “totalmente verdadeiro”, que procura mulher rica, carinhosa, bonita, fiel e filha única. Mas que fique claro: são todos quesitos de preferência, não se trata de exigência.

Cícero Alves e seu perfil, na agência.

Fazendo jus ao adjetivo que o define, Cícero diz com naturalidade querer uma companheira que seja ao mesmo tempo sua empresária. “Tenho muitos sonhos, acima até da normalidade, e quero alguém para realizar meus sonhos com o dinheiro dela, em benefício dela também”.

Não é golpe do baú. Apenas uma troca, que não poderia se concretizar escolhendo ele uma mulher de poucos recursos. “Se eu falar que quero uma simplesinha, não é do meu gosto. Até poderia ser, mas não tenho condições de sustentar”.

Sobre a opção por filha única, Cícero argumenta que é para fugir do risco que as cunhadas podem oferecer. “Esbarra na questão da fidelidade. Às vezes acontece de eu me interessar por ela e ela por mim”, explica. É melhor evitar a tentação.

A agência toma conta do tempo de Cícero. Tirando o dia em que ele tem que ir a Salitre para receber o beneficio do INSS – é aposentado por invalidez devido a uma deficiência visual -, em mais nenhum outro a jornada escapa das 12 horas. Almoça rapidinho na casa da mãe, a 200 metros da agência, e, não raro, passa a noite no local de trabalho, pensando e repensando estratégias.

Quando veicula anúncio na rádio, algum ou outro põe as caras na porta e pergunta como funciona o esquema. Mas o convite à inscrição é sempre respondido com um “deixa alguém se inscrever primeiro que então eu venho”.

Cícero diz que o problema dos solteiros da região não é a timidez, mas a ineficácia das cantadas, muito fracas. O “pode ser ou tá difícil”, segundo ele, ainda reina por lá. “Em vez de aproximar, a pessoa só afasta a moça”, diz ele com conhecimento de causa. Há muitos anos é o intermediador dos casais interessados em relacionamento sério, mas sem jeito para iniciar um contato. Comunicador, cantador de bingo, sempre foi procurado para entregar recadinhos apaixonados, a começar por um tio, que gostava de uma morena, mas não sabia como agilizar o processo. Hoje, tio Francisco é casado com a amada e tem uma porção de filhos. “Levou um tempo, mas a intermediação deu certo”, conta.

Assim que a agência engrenar, Cícero pretende colocar em prática outro projeto: construir a Casa Sagrada de Gratificação do Digno, para receber os adeptos (que ainda estão por vir) da religião que ele criou, a Prática do Bem. O dinheiro para as obras virá de atos como o casamento que ele quer oferecer para os casais que se formarem a partir da Correio do Amor.

“Quero unir as pessoas e acredito que tenho essa graça de estar abençoando os casais”, diz. Bênção que estaria também disponível a casais já unidos, especialmente os amancebados, ditos pelo povo “amaldiçoados” e condenados a se transformarem em animais por não viverem uma relação tutelada pelo catolicismo. “Minha bênção é uma proteção. Não quero que mais ninguém vire bicho”.

Um dos nove irmãos de Cícero, na ausência deste, se atreveu classificar o negócio como uma furada. Talvez os moradores de Lagoa dos Paulinos, povoado que possui menos de uma dezena de ruas e umas 50 casas, compartilhem da mesma opinião, já que ninguém, até janeiro, pelo menos, ainda havia se atrevido a investir os R$ 10 pelo serviço do rapaz. E Cícero, mesmo que aparentemente desconfiando do descrédito que lhe é atribuído, só quer é saber de seguir adiante com seu empreendimento, num entusiasmo de fazer inveja a muito empresário de sucesso. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A aproveitadora de sombrinhas desprezadas

Somente aos três anos é que seu nascimento foi registrado em cartório. Não fosse um hóspede da pensão do pai aconselhar a feitura da certidão, talvez Maria Aparecida Pena demorasse ainda um pouco mais para oficialmente existir. E consta ser ela uma cidadã votuporanguense, e não cardosense, como é de fato. O que, para ela, não importa. Antigamente era assim mesmo que funcionava - ou talvez ainda funcione, em muitas ocasiões e lugares.

Cresceu sendo chamada ora de Cidinha, ora de Peninha. Estudou até a quarta série primária. Aos 10 anos entrou para um curso de corte e costura e, com 12, "já era costureira formada", conta. Trabalhou para várias confecções e até aquelas camisas brancas de doer dos oficiais da aeronáutica ela chegou a coser.

Dos 15 aos 17, enfrentou o grande desafio de ocupar a função de cozinheira-chefe no lugar da mãe, que ficara doente, no acampamento que abrigava os obreiros da BR-101 em Juquitiba. Diariamente, preparava as quatro refeições de 240 trabalhadores. Ela, a irmã e dois ajudantes. Levantava às 4h para dar conta do café da manhã e terminava o serviço entre 20h e 21h. Só depois ia descansar. Foi assim durante dois anos, até o término da construção do trecho de rodovia.

Aos 18 anos, morando em Itaquera, conseguiu vaga para residir e estudar em um hospital na zona norte. Sonho seu ser enfermeira. Mas a mãe não deixou. "No passado, eles achavam que enfermeira não era profissão para moça. E a gente tinha obediência, não vou dizer cega, mas saudável, e obedecia".

Pouco depois conheceu, numa festa de casamento, o que veio a se tornar seu marido. Uma semana antes do falecimento do pai. Ela tinha 19 anos. Com José da Silva Siqueira teve quatro filhos e uma vida familiar que durou 25 anos. Quando se divorciou, não quis mais saber de homem. "Eu tinha mais coisas para pensar e batalhar com os meninos", justifica.

Há dois anos mora na Praia Grande, onde se associou a um dos filhos em um comércio, e agora está com a casa à venda, porque vai tentar mais uma batalha ao lado dele. O empreendedorismo se faz necessário e ela não tem medo de arriscar. Talvez volte para a zona leste ou siga para Mauá. Em breve o futuro estará decidido.

Mas de uma coisa ela não abrirá mão: a produção de bolsas feitas com tecido de guarda-chuvas e sombrinhas sem utilização. Já faz uns anos que ela começou com essa história. Vinha conversando com uma amiga pelo caminho, quando, sem mais nem menos, surgiu o assunto. Ela havia guardado dois guarda-chuvas para aproveitar o pano de alguma forma e a amiga, por coincidência, também dispunha de uma sombrinha. "Por que você não costura uma bolsa para mim?". A sugestão da amiga virou negócio.

Maria Aparecida lançou a campanha entre os filhos, amigos dos filhos, vizinhos. Quebrou sombrinha, o destino é certo! E a produção de bolsas, sacolas de supermercado e carteiras foi se desenvolvendo. Mais que uma ajuda com as contas no final do mês, a ação da costureira evita que mais material vá pro lixo. Até a armação tem destinação correta: os carrinhos dos catadores de recicláveis.

Mesmo antes de o termo sustentabilidade virar moda, Maria Aparecida já era incentivada a agir responsavelmente com o meio em que vive. Ela lembra que o pai, quando tinha a pensão, em um dia ia buscar palmito na mata para as refeições dos hóspedes, e no dia seguinte voltava para fazer o replantio. "Palmito não ia nascer sozinho. Por isso ele ia lá desfazer o que tinha feito".

Lição aprendida. Nada se perde nas mãos de Maria Aparecida. Até para o que sobra de retalhos depois das bolsas prontas, ela achou uma destinação. "Percebi que os retalhos, misturados à espuma, deixam a almofada mais leve".

E assim, a existência dessa pessoa, que demorou um pouco a "existir", se torna cada dia mais essencial.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Deusa e sua biblioteca comunitária

Maria Delzira dos Santos, a Deusa, 47 anos, queria fazer faculdade de pedagogia. Iniciou o curso, mas não houve meio de continuar. Tentou então o secretariado bilíngue. Mais uma vez, sem chance. E a sequência de tentativas frustradas, acrescida da necessidade de colocar o pão à mesa, a fez parar de sonhar e voltar-se para o concreto. Literalmente. "Ela pega na ferramenta, ergue parede. Eu tenho medo de mexer com elétrica e ela não tem", comenta o atual marido da mulher que ultimamente ganhou o apelido de Pereirão (em referência à personagem de Lília Cabral na novela da Globo) na comunidade onde vive.

Deusa mora na favela do Areião, no Guarujá, litoral de São Paulo. Com os próprios braços está erguendo mais paredes em casa. Mas só no dia em que tem uma folga, entre uma obra e outra que faz pela cidade. As que são possíveis, claro, porque no Guarujá ninguém quer saber de contratar mulher para trabalhar no pesado. "Eu carreguei mais de 45 carrinhos para fora de aterro e nem por isso deixei de ser mulher. Quando a gente quer, tem que ir à luta". Mas parece que essa luta não é muito bem vista ao olhar masculinizado do mundo da construção civil. Até o marido acaba ganhando um puxão de orelha durante o bate-papo na calçada da rua estreita onde Deusa vive. "É preconceito dele também, porque, se ele quisesse, dizia que só aceitava o serviço se eu fosse junto e pronto". Nada mais justo. Afinal, é ela quem criou e administra a firma que emprega o companheiro.

Deusa é cheia das iniciativas, e a ampliação que faz no cômodo da rua A do Areião tem a ver com uma ideia que surgiu lá no passado, está encostada do outro lado da rua, no cômodo de um vizinho, e talvez nem volte a se tornar realidade. Deusa é dona de uma biblioteca. Durante anos, gente de toda a comunidade e de bairros até distantes, como Perequê e Morrinhos, mantinham bem ativas suas carteirinhas de empréstimo. No caderno de registros, mais de 200 leitores de todas as idades. Cuidar da Biblioteca Comunitária do Areião era um gosto para Deusa. Era dela. Criada a partir de livros escolares dos filhos e expandida com doações que foram chegando com o tempo, especialmente depois das reportagens concedidas a rádios, jornais e televisão. Ela não queria aparecer, mas todos queriam noticiar.

Bons tempos os em que ela podia se dedicar à biblioteca e, quando saía para trabalhar, contava com os filhos, que se encarregavam do entra e sai que transformava sua casa em local público. Suas quatro paredes recebiam a todos e com os leitores pequenos ela até chegou a por em prática parte do sonho de ser pedagoga. Deu aulas de reforço escolar, contava histórias. Foram tardes e mais tardes com a sala cheia, em roda, mexendo com o imaginário que só um livro pode despertar.

A biblioteca ajudou Deusa a superar momentos difíceis, como a perda de um filho atropelado aos sete anos e outro com um ano e nove meses, em razão de uma pneumonia. Hoje, um teria 24 e o outro, 22. Mas agora, que os demais filhos de pequenos se tornaram grandes e, casados, foram cuidar de suas vidas, Deusa não tem como manter a biblioteca. Não há quem fique em casa, fazendo os empréstimos, quando o trabalho de Deusa chama.

Ela nunca ganhou nada com a biblioteca, a não ser mais trabalho a cada dia em função das doações que nunca pararam de chegar. Mesmo assim, "fazia com carinho, não tinha tempo ruim", diz ela. O tempo, porém, virou um vendaval, e o fato de não poder mais dedicar-se a esse trabalho voluntário a deixa triste, por vezes irritada. Ela nem queria tocar no assunto. Mas esta blogueira insistiu. Apesar de interrompida, a história da mulher da biblioteca comunitária existe e fez a diferença na vida de muitos. Não há que não se lembre do bom livro lido na infância, nem adulto que, ao mergulhar na leitura depois de grande, não sonhe de olhos bem abertos com os personagens das páginas amareladas e suas aventuras.

Deusa não quis se deixar fotografar. Não há sorriso para estampar. Nem a tristeza precisa aparecer. Bem por isso, como acontece na leitura de um livro, fica aqui ao leitor deste texto a tarefa de imaginar como é Deusa e sua biblioteca, bem como a rua estreita do Areião que vê dia a dia um tijolo a mais sendo assentado na casa que no futuro, quem sabe, pode voltar a abrigar o acervo de mais de centena de exemplares.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Dia de mutirão, tinta na cara, calos nas mãos

Seis horas da manhã do sábado, sol querendo aparecer nas frestas da janela e o despertador do celular soa, irritante como sempre. Coisa mais chata levantar cedo também no fim de semana. Ninguém merece! Mas a perturbação, em poucos instantes, dá lugar a uns primeiros lampejos de consciência. Naquela ocasião, alguém merece sim. Não é qualquer dia, nem qualquer compromisso ou encheção de saco que faz cair da cama tão precocemente. De qualquer forma, não há muito tempo. Melhor levantar logo, para não cair na tentação dos cinco minutinhos extra debaixo das cobertas. À espera, existem amigos, e mais do que isso, uma turminha que nem sonha com tamanha força de vontade!

Na próxima segunda-feira, 6 de janeiro, uma centena de alunos da zona rural de Ibiúna vai se deparar com uma escola diferente, justamente porque o sábado, de manhã nebulosa, foi dia de mutirão, que começou com encontro no primeiro posto de combustíveis da Raposo Tavares depois do Rodoanel. Dali, estrada a baixo, rumo ao município vizinho a São Paulo. Dia de trabalhar junto, de calejar a mão na enxada, de sujar a cara de tinta, de subir no telhado. De arrumar cano furado, de riscar a amarelinha no chão, de desenhar um cartaz de boas-vindas. De comer pão com mortadela e tomar café feito no fogão industrial cheio de segredos, que demora a ligar, mas, quando ligado, ferve a água numa rapidez que é uma beleza!

Dia de pensar que as crianças que nem sonham com isso tudo têm direito a ter uma vida como é a de cada um unido nesse mutirão. De acordar cedo, sim, com o despertador chato, sim, mas poder ir para a empresa fazer os cálculos que a engenharia exige, de ir para a rua e dela reportar os problemas e as alegrias das pessoas, de subir o elevador do prédio chique e falar inglês com os clientes. E vai ser a partir da escola mais bonita que as crianças da escola municipal Tereza Falci vão descobrir que existe uma galera de um tal de Projeto Presente para o Futuro que se importa com o futuro delas. Que passou as férias fazendo planos para agregar ao trabalho dos professores.

"Imagine você chegar à escola, vê-la melhorada e saber que aquilo foi feito por pessoas que você nunca viu", antecipa a reação da criançada o engenheiro ambiental Thiago Pereira, de 28 anos, que mora na boêmia Vila Madalena. "Sempre estudei em escolas em que as condições de estudo não contribuíam muito, tanto para o aprendizado quanto para a relação com os outros alunos. Então, acho que uma boa educação também está relacionada com as condições do local de estudo, da pré-escola até o ensino superior", diz ele, que também fez cair da cama cedo a namorada, Letícia Manolio, 32.

Thiago Pereira prepara madeira para reparos nas portas das salas de aula.

O Projeto Presente para o Futuro é uma espécie de cria do Terra das Boas Ideias. Por conta de uma reportagem para o TBI, surgiu o PPF, e agora esta blogueira já não sabe mais a quem dar mais atenção, se a uma siga ou a outra. Dorme escrevendo para um, acorda pensando no outro. E no sábado, também esmurrou o despertador em nome dos alunos do afastado bairro do Cupim. Até podia ter ficado mais na cama, uma vez que teve que esperar a boa vontade da CPTM em liberar um trem para trazer a amiga Karina Pina até a estação Cidade Jardim para juntas seguirem para o posto no Pangaré (o meio de transporte deste blog). Foi quase meia hora de espera em local proibido (por falta de opção), temendo avistar algum marronzinho pelo retrovisor.

Karina, 29 anos, é secretária em um escritório de advocacia, e mesmo preocupada com o namorado que acordou mal do aparelho respiratório, não fugiu à missão. Ligava pra ele de meia em meia hora, mas pintou as amarelinhas no chão direitinho. "Se as crianças ficarem felizes de ver a nova amarelinha no chão, já valeu a pena toda essa dor nas pernas", diz Karina, que penou com o agacha e levanta constante no meio do pátio.

Karina Pina e a namorada de Thiago, Letícia, pintando a amarelinha.
De olho em tudo, ficou a nova diretora da escola, Etelvina Fabiano, que assim como os integrantes do projeto ainda não conhece os alunos. "Achei ótima a iniciativa. A turma deixou o diga de folga e deu um duro danado", comenta a diretora sobre o mutirão do sábado, já pensando nas próximas ações. "Não vejo a hora de vocês começarem a falar com eles da importância do estudo. Eles precisam de incentivo" e vocês têm experiência para passar".

E se ela gostou do resultado do mutirão, quem dirá a criançada. Além de amarelinhas, a escola ganhou ilustração na parede pátio, horta com mudas de alface, rúcula e várias plaquinhas exortando à preservação e aos bons cuidados, uma porção de pitangueiras que em breve começarão a dar frutos e portas das salas de aula reformadas, pintadas e identificadas com muita arte.

Voluntário William Souza decora parede do pátio da escola.
Tudo obra dos voluntários da foto abaixo. Galera que mal terminou um mutirão e já pensa nos próximos. Ainda há muito o que fazer e mais mãos serão necessárias. E como todo mundo parece ter gostado muito de participar do primeiro, talvez o soar do despertador se transforme em algo bem menos chateador do que normalmente é.

Galera reunida ao final dos trabalhos. De preto, a diretora da escola, Etelvina.
As demais fotos do mutirão estão na página do Presente para o Futuro no Facebook. Aproveite para curtir a página e, por meio dela, acessar o blog do projeto.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Um clique na floresta

Ainda antes de escrever sobre Defunto e a agência de relacionamento do Digníssimo Cícero Alves, lá do Ceará, vamos a mais uma boa ideia de um conterrâneo, o bebedourense Michelângelo Stamato. O comerciante de 35 anos, três anos e meio atrás, decidiu começar a fotografar as aves existentes na zona urbana da cidade, a exemplo do que havia sido feito por outros observadores em São Paulo e que foram parar nas páginas de uma revista que o inspirou.

Michelângelo Stamato e a câmera, presente de um irmão, na Floresta de Bebedouro.

De posse de uma câmera profissional novinha em folha, presente de um de seus irmãos, ele passou a frequentar semanalmente as áreas verdes de Bebedouro, fazer seus cliques, e, posteriormente, pesquisar na internet e em livros a espécie de cada pássaro alvo de suas lentes. E a melhor ideia foi fornecer as imagens para um projeto educacional mantido pelo governo do Estado dentro da Floresta Estadual de Bebedouro.

A gestora da floresta, Alessandra Pinheiro Fernandes, está muito satisfeita com as fotos. "Vemos as aves no cotidiano, mas nem sempre conseguimos saber do que se trata. Com as fotos fica muito mais fácil", diz, acrescentando que em breve serão produzidos banners com as imagens para serem espalhados pelo local. Hoje em dia, as crianças atendidas pelo programa vêem as aves no computador e depois saem para procurá-las na Floresta.

Mesmo durante a entrevista, Michelângelo não para de observar.

Das 230 espécies que Michelângelo afirma ter visto em Bebedouro, 214 ele conseguiu fotografar. Faltou câmera ou um pouco mais de tempo para registrar as outras 16. E das 214 registradas, 201 já tiveram a identidade comprovada e compartilhada no WikiAves, site especializado na identificação das espécies.

Futuramente, ele pretende organizar um guia para divulgar a diversidade encontrada em Bebedouro e alertar a população sobre os riscos que as queimadas, constantes especialmente na época do calor, representam para a fauna local. Segundo ele, animais que antes eram vistos aos montes em algumas matas, hoje já não aparecem mais.