segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A aproveitadora de sombrinhas desprezadas

Somente aos três anos é que seu nascimento foi registrado em cartório. Não fosse um hóspede da pensão do pai aconselhar a feitura da certidão, talvez Maria Aparecida Pena demorasse ainda um pouco mais para oficialmente existir. E consta ser ela uma cidadã votuporanguense, e não cardosense, como é de fato. O que, para ela, não importa. Antigamente era assim mesmo que funcionava - ou talvez ainda funcione, em muitas ocasiões e lugares.

Cresceu sendo chamada ora de Cidinha, ora de Peninha. Estudou até a quarta série primária. Aos 10 anos entrou para um curso de corte e costura e, com 12, "já era costureira formada", conta. Trabalhou para várias confecções e até aquelas camisas brancas de doer dos oficiais da aeronáutica ela chegou a coser.

Dos 15 aos 17, enfrentou o grande desafio de ocupar a função de cozinheira-chefe no lugar da mãe, que ficara doente, no acampamento que abrigava os obreiros da BR-101 em Juquitiba. Diariamente, preparava as quatro refeições de 240 trabalhadores. Ela, a irmã e dois ajudantes. Levantava às 4h para dar conta do café da manhã e terminava o serviço entre 20h e 21h. Só depois ia descansar. Foi assim durante dois anos, até o término da construção do trecho de rodovia.

Aos 18 anos, morando em Itaquera, conseguiu vaga para residir e estudar em um hospital na zona norte. Sonho seu ser enfermeira. Mas a mãe não deixou. "No passado, eles achavam que enfermeira não era profissão para moça. E a gente tinha obediência, não vou dizer cega, mas saudável, e obedecia".

Pouco depois conheceu, numa festa de casamento, o que veio a se tornar seu marido. Uma semana antes do falecimento do pai. Ela tinha 19 anos. Com José da Silva Siqueira teve quatro filhos e uma vida familiar que durou 25 anos. Quando se divorciou, não quis mais saber de homem. "Eu tinha mais coisas para pensar e batalhar com os meninos", justifica.

Há dois anos mora na Praia Grande, onde se associou a um dos filhos em um comércio, e agora está com a casa à venda, porque vai tentar mais uma batalha ao lado dele. O empreendedorismo se faz necessário e ela não tem medo de arriscar. Talvez volte para a zona leste ou siga para Mauá. Em breve o futuro estará decidido.

Mas de uma coisa ela não abrirá mão: a produção de bolsas feitas com tecido de guarda-chuvas e sombrinhas sem utilização. Já faz uns anos que ela começou com essa história. Vinha conversando com uma amiga pelo caminho, quando, sem mais nem menos, surgiu o assunto. Ela havia guardado dois guarda-chuvas para aproveitar o pano de alguma forma e a amiga, por coincidência, também dispunha de uma sombrinha. "Por que você não costura uma bolsa para mim?". A sugestão da amiga virou negócio.

Maria Aparecida lançou a campanha entre os filhos, amigos dos filhos, vizinhos. Quebrou sombrinha, o destino é certo! E a produção de bolsas, sacolas de supermercado e carteiras foi se desenvolvendo. Mais que uma ajuda com as contas no final do mês, a ação da costureira evita que mais material vá pro lixo. Até a armação tem destinação correta: os carrinhos dos catadores de recicláveis.

Mesmo antes de o termo sustentabilidade virar moda, Maria Aparecida já era incentivada a agir responsavelmente com o meio em que vive. Ela lembra que o pai, quando tinha a pensão, em um dia ia buscar palmito na mata para as refeições dos hóspedes, e no dia seguinte voltava para fazer o replantio. "Palmito não ia nascer sozinho. Por isso ele ia lá desfazer o que tinha feito".

Lição aprendida. Nada se perde nas mãos de Maria Aparecida. Até para o que sobra de retalhos depois das bolsas prontas, ela achou uma destinação. "Percebi que os retalhos, misturados à espuma, deixam a almofada mais leve".

E assim, a existência dessa pessoa, que demorou um pouco a "existir", se torna cada dia mais essencial.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Deusa e sua biblioteca comunitária

Maria Delzira dos Santos, a Deusa, 47 anos, queria fazer faculdade de pedagogia. Iniciou o curso, mas não houve meio de continuar. Tentou então o secretariado bilíngue. Mais uma vez, sem chance. E a sequência de tentativas frustradas, acrescida da necessidade de colocar o pão à mesa, a fez parar de sonhar e voltar-se para o concreto. Literalmente. "Ela pega na ferramenta, ergue parede. Eu tenho medo de mexer com elétrica e ela não tem", comenta o atual marido da mulher que ultimamente ganhou o apelido de Pereirão (em referência à personagem de Lília Cabral na novela da Globo) na comunidade onde vive.

Deusa mora na favela do Areião, no Guarujá, litoral de São Paulo. Com os próprios braços está erguendo mais paredes em casa. Mas só no dia em que tem uma folga, entre uma obra e outra que faz pela cidade. As que são possíveis, claro, porque no Guarujá ninguém quer saber de contratar mulher para trabalhar no pesado. "Eu carreguei mais de 45 carrinhos para fora de aterro e nem por isso deixei de ser mulher. Quando a gente quer, tem que ir à luta". Mas parece que essa luta não é muito bem vista ao olhar masculinizado do mundo da construção civil. Até o marido acaba ganhando um puxão de orelha durante o bate-papo na calçada da rua estreita onde Deusa vive. "É preconceito dele também, porque, se ele quisesse, dizia que só aceitava o serviço se eu fosse junto e pronto". Nada mais justo. Afinal, é ela quem criou e administra a firma que emprega o companheiro.

Deusa é cheia das iniciativas, e a ampliação que faz no cômodo da rua A do Areião tem a ver com uma ideia que surgiu lá no passado, está encostada do outro lado da rua, no cômodo de um vizinho, e talvez nem volte a se tornar realidade. Deusa é dona de uma biblioteca. Durante anos, gente de toda a comunidade e de bairros até distantes, como Perequê e Morrinhos, mantinham bem ativas suas carteirinhas de empréstimo. No caderno de registros, mais de 200 leitores de todas as idades. Cuidar da Biblioteca Comunitária do Areião era um gosto para Deusa. Era dela. Criada a partir de livros escolares dos filhos e expandida com doações que foram chegando com o tempo, especialmente depois das reportagens concedidas a rádios, jornais e televisão. Ela não queria aparecer, mas todos queriam noticiar.

Bons tempos os em que ela podia se dedicar à biblioteca e, quando saía para trabalhar, contava com os filhos, que se encarregavam do entra e sai que transformava sua casa em local público. Suas quatro paredes recebiam a todos e com os leitores pequenos ela até chegou a por em prática parte do sonho de ser pedagoga. Deu aulas de reforço escolar, contava histórias. Foram tardes e mais tardes com a sala cheia, em roda, mexendo com o imaginário que só um livro pode despertar.

A biblioteca ajudou Deusa a superar momentos difíceis, como a perda de um filho atropelado aos sete anos e outro com um ano e nove meses, em razão de uma pneumonia. Hoje, um teria 24 e o outro, 22. Mas agora, que os demais filhos de pequenos se tornaram grandes e, casados, foram cuidar de suas vidas, Deusa não tem como manter a biblioteca. Não há quem fique em casa, fazendo os empréstimos, quando o trabalho de Deusa chama.

Ela nunca ganhou nada com a biblioteca, a não ser mais trabalho a cada dia em função das doações que nunca pararam de chegar. Mesmo assim, "fazia com carinho, não tinha tempo ruim", diz ela. O tempo, porém, virou um vendaval, e o fato de não poder mais dedicar-se a esse trabalho voluntário a deixa triste, por vezes irritada. Ela nem queria tocar no assunto. Mas esta blogueira insistiu. Apesar de interrompida, a história da mulher da biblioteca comunitária existe e fez a diferença na vida de muitos. Não há que não se lembre do bom livro lido na infância, nem adulto que, ao mergulhar na leitura depois de grande, não sonhe de olhos bem abertos com os personagens das páginas amareladas e suas aventuras.

Deusa não quis se deixar fotografar. Não há sorriso para estampar. Nem a tristeza precisa aparecer. Bem por isso, como acontece na leitura de um livro, fica aqui ao leitor deste texto a tarefa de imaginar como é Deusa e sua biblioteca, bem como a rua estreita do Areião que vê dia a dia um tijolo a mais sendo assentado na casa que no futuro, quem sabe, pode voltar a abrigar o acervo de mais de centena de exemplares.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Dia de mutirão, tinta na cara, calos nas mãos

Seis horas da manhã do sábado, sol querendo aparecer nas frestas da janela e o despertador do celular soa, irritante como sempre. Coisa mais chata levantar cedo também no fim de semana. Ninguém merece! Mas a perturbação, em poucos instantes, dá lugar a uns primeiros lampejos de consciência. Naquela ocasião, alguém merece sim. Não é qualquer dia, nem qualquer compromisso ou encheção de saco que faz cair da cama tão precocemente. De qualquer forma, não há muito tempo. Melhor levantar logo, para não cair na tentação dos cinco minutinhos extra debaixo das cobertas. À espera, existem amigos, e mais do que isso, uma turminha que nem sonha com tamanha força de vontade!

Na próxima segunda-feira, 6 de janeiro, uma centena de alunos da zona rural de Ibiúna vai se deparar com uma escola diferente, justamente porque o sábado, de manhã nebulosa, foi dia de mutirão, que começou com encontro no primeiro posto de combustíveis da Raposo Tavares depois do Rodoanel. Dali, estrada a baixo, rumo ao município vizinho a São Paulo. Dia de trabalhar junto, de calejar a mão na enxada, de sujar a cara de tinta, de subir no telhado. De arrumar cano furado, de riscar a amarelinha no chão, de desenhar um cartaz de boas-vindas. De comer pão com mortadela e tomar café feito no fogão industrial cheio de segredos, que demora a ligar, mas, quando ligado, ferve a água numa rapidez que é uma beleza!

Dia de pensar que as crianças que nem sonham com isso tudo têm direito a ter uma vida como é a de cada um unido nesse mutirão. De acordar cedo, sim, com o despertador chato, sim, mas poder ir para a empresa fazer os cálculos que a engenharia exige, de ir para a rua e dela reportar os problemas e as alegrias das pessoas, de subir o elevador do prédio chique e falar inglês com os clientes. E vai ser a partir da escola mais bonita que as crianças da escola municipal Tereza Falci vão descobrir que existe uma galera de um tal de Projeto Presente para o Futuro que se importa com o futuro delas. Que passou as férias fazendo planos para agregar ao trabalho dos professores.

"Imagine você chegar à escola, vê-la melhorada e saber que aquilo foi feito por pessoas que você nunca viu", antecipa a reação da criançada o engenheiro ambiental Thiago Pereira, de 28 anos, que mora na boêmia Vila Madalena. "Sempre estudei em escolas em que as condições de estudo não contribuíam muito, tanto para o aprendizado quanto para a relação com os outros alunos. Então, acho que uma boa educação também está relacionada com as condições do local de estudo, da pré-escola até o ensino superior", diz ele, que também fez cair da cama cedo a namorada, Letícia Manolio, 32.

Thiago Pereira prepara madeira para reparos nas portas das salas de aula.

O Projeto Presente para o Futuro é uma espécie de cria do Terra das Boas Ideias. Por conta de uma reportagem para o TBI, surgiu o PPF, e agora esta blogueira já não sabe mais a quem dar mais atenção, se a uma siga ou a outra. Dorme escrevendo para um, acorda pensando no outro. E no sábado, também esmurrou o despertador em nome dos alunos do afastado bairro do Cupim. Até podia ter ficado mais na cama, uma vez que teve que esperar a boa vontade da CPTM em liberar um trem para trazer a amiga Karina Pina até a estação Cidade Jardim para juntas seguirem para o posto no Pangaré (o meio de transporte deste blog). Foi quase meia hora de espera em local proibido (por falta de opção), temendo avistar algum marronzinho pelo retrovisor.

Karina, 29 anos, é secretária em um escritório de advocacia, e mesmo preocupada com o namorado que acordou mal do aparelho respiratório, não fugiu à missão. Ligava pra ele de meia em meia hora, mas pintou as amarelinhas no chão direitinho. "Se as crianças ficarem felizes de ver a nova amarelinha no chão, já valeu a pena toda essa dor nas pernas", diz Karina, que penou com o agacha e levanta constante no meio do pátio.

Karina Pina e a namorada de Thiago, Letícia, pintando a amarelinha.
De olho em tudo, ficou a nova diretora da escola, Etelvina Fabiano, que assim como os integrantes do projeto ainda não conhece os alunos. "Achei ótima a iniciativa. A turma deixou o diga de folga e deu um duro danado", comenta a diretora sobre o mutirão do sábado, já pensando nas próximas ações. "Não vejo a hora de vocês começarem a falar com eles da importância do estudo. Eles precisam de incentivo" e vocês têm experiência para passar".

E se ela gostou do resultado do mutirão, quem dirá a criançada. Além de amarelinhas, a escola ganhou ilustração na parede pátio, horta com mudas de alface, rúcula e várias plaquinhas exortando à preservação e aos bons cuidados, uma porção de pitangueiras que em breve começarão a dar frutos e portas das salas de aula reformadas, pintadas e identificadas com muita arte.

Voluntário William Souza decora parede do pátio da escola.
Tudo obra dos voluntários da foto abaixo. Galera que mal terminou um mutirão e já pensa nos próximos. Ainda há muito o que fazer e mais mãos serão necessárias. E como todo mundo parece ter gostado muito de participar do primeiro, talvez o soar do despertador se transforme em algo bem menos chateador do que normalmente é.

Galera reunida ao final dos trabalhos. De preto, a diretora da escola, Etelvina.
As demais fotos do mutirão estão na página do Presente para o Futuro no Facebook. Aproveite para curtir a página e, por meio dela, acessar o blog do projeto.