terça-feira, 18 de outubro de 2011

Seu Carlos e seus sonhos tão dispersos

Fico pensando se o seu Carlos não sente falta do jornalismo. Será que nas noites frias e de insônia na calçada do Teatro Cultura Artística não lhe dá vontade de voltar no tempo em que um bloco de papel e uma máquina de escrever eram seus companheiros inseparáveis? Agora, de inseparável, ele só tem duas sacolas pretas onde guarda suas poucas roupas. Já teve carrinhos de juntar papelão, mas lhe roubaram.

Até pouco tempo atrás ele também tinha uma dentadura, da qual só se separava na hora de dormir. E aí ele inventa de amarrá-la no carrinho e levam carrinho com dentadura junto.

E então me ponho a pensar que nem se ele tivesse dentes na boca, que adiantaria sonhar com o jornalista que ele um dia foi? Ele não terá mais a oportunidade de escrever para um grande jornal. Ou mesmo pequeno, que seja. Ele não tem endereço. Referências. Portfólio até teve. Sem falar num colega do jornal que fez um livro e contou o trabalho dele em algumas páginas. Mas isso alguém também surrupiou.

E fico pensando ainda se seu Carlos não sente falta da família que está em Minas. Será que nas noites frias e de insônia na mesma calçada não lhe dá vontade de dormir no quarto ao lado de uma das irmãs e com ela tomar café quentinho passado no coador de pano? Ele tem uma família, com sobrinhos e tudo o mais. Agora, com eles, o único contato é por telefone, porque ele não pode dar o endereço para receber carta. Não o tem. E também não tem coragem de dizer que mora na rua e que a última mudança que fez foi sair da Consolação com a Araújo para a calçada do teatro, porque a guarda municipal achou que ele estava muito visível aos olhos da população.

E como é que ele vai chegar em casa para rever os familiares sem dentadura, sem endereço, sem mala, só com duas sacolas pretas de lixo na mão?

Ah, ele deve sentir falta do jornalismo e da família. Mas essas, para ele, já não são coisas acessíveis. E assim se conforma com a vida que vai levando. Sem mais nenhum sonho. Sem mais vontades. Até que a morte chegue ou alguém se apresente para lhe estender a mão.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O primeiro fruto do Terra das Boas Ideias

Dois meses depois de sua entrada no ar, o Terra das Boas Ideias já colhe o primeiro fruto diante da concepção que lhe foi atribuída: incentivar seus leitores a ter a mesma atitude de pessoas - entrevistadas para o blog - que optaram por tomar a iniciativa em vez de ficar esperando pelos outros, que arregaçaram as mangas e chamaram a responsabilidade para si.

Depois da veiculação da reportagem sobre os Amigos do Barracão, mais pessoas voltaram seu olhar para o município de Ibiúna-SP e suas carências. E no chuvoso e barrento dia de ontem, o que chamo provisoriamente de Projeto Ideias para Ibiúna começou a ganhar forma, com uma reunião na casa dos fundadores do barracão, que tanto conhecem a realidade daquela comunidade.

Parece que tem uma galera com vontade de ajudar, e o blog fica muito feliz com isso, porque a comunidade de Ibiúna, especialmente a que mora na zona rural (maioria da população), precisa muito. As ideias estão surgindo, desde já com um viés educacional. Porque acreditamos que sem educação a situação naquele lugar não vai mudar.

O Terra das Boas Ideias está diretamente envolvido com esse trabalho que ora começa e convida seus leitores a se engajarem e acompanharem o passo a passo disso tudo na página do blog no Facebook, onde está sendo postado um álbum com fotos da reunião de ontem, feitas pela mascote do grupo, a Isabela Souza.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Um sinal no fim do túnel

Depois de conversar uns dez minutos com a psicopedagoga Christiane D’Angelo Fernandes, 47 anos, não dá para duvidar que ela seja capaz de transformar agressividade em ternura. Seu entusiasmo é contagiante e empregado no tratamento de crianças e adolescentes com dificuldades no convívio social.

Mas tem um trabalho, que extrapola os limites diários de um consultório, que a deixa ainda mais reluzente. O de voluntária em um grupo que atua dando respaldo ao trabalho do Ambulatório de Socialização do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Esse grupo se chama Sinal (Socialização da Infância e Adolescência Laborada) e dele ela é a diretora-executiva.

Todas as segundas-feiras à tarde e em um sábado por mês, ela e colegas de voluntariado destinam um tempo para conhecer um pouco mais da realidade dos pacientes do Instituto que apresentam dois tipos de transtorno: o de conduta e o opositivo-desafiador. Sabe aquelas crianças que são sempre do contra, não querem obedecer ninguém, não se enturmam, não têm autocontrole sobre as situações e vivem fazendo ameaças por aí? Então, elas são o alvo de Christiane e sua equipe, que também lidam com os familiares dessas crianças e adolescentes. Afinal, o convívio dentro de casa está diretamente relacionado com a questão.

Christiane também tem família. É casada há 21 anos, tem um filho de 17 e uma filha de 14. E como todo mundo na casa já percebeu que sem a atividade voluntária ela não seria a mesma pessoa, o apoio é integral. "Eles compartilham, curtem muito", diz a psicopedagoga, que tempos atrás ouviu da filha que ela era sua heroína. Também pudera. A mãe lida com situações difíceis, relacionamentos delicados de pais e filhos, e chega em casa sempre sorridente, cheia de carinho para dar e ainda com disposição para mais trabalho voluntário – a Sinal não é sua única fonte de 'doação ao próximo'.

Marido e filhos entendem o sentido dessa dedicação e já começaram a dar os primeiros passos no encalço da mãe. Perceberam que é gostoso ajudar. Que acordar às 5h da manhã de um domingo para levar alimento e uma palavra amiga a um necessitado dá uma sensação ao final do dia que um belo passeio na praia, sob a sombra e regado à água fresca, talvez não propiciasse.

Para Christiane, o tempo que se doa como voluntário não é um tempo que se perde. É um tempo vivido em dobro. "Faz bem pra saúde, emocionalmente, te traz muitos amigos", enumera a mulher que não aparenta estar perto dos 50 anos e que garante ser o segredo dessa vivacidade toda a felicidade obtida por poder fazer o que faz.



Vídeo: Luciana Quierati

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Inspirada em site de compras coletivas, dupla cria Mendigo Urbano


De tanto receber e-mails de um site de compras coletivas (o Peixe Urbano), brotou uma ideia na cabeça de João Burzlaff: porque não criar um site de ajuda coletiva a moradores de rua? Ele a compartilhou com o amigo de infância Bruno Henrique Stein e nasceu, então, o Mendigo Urbano, em agosto deste ano.

Por meio do site, qualquer pessoa pode doar, via cartão de crédito, qualquer quantia para um dos moradores de rua elencados. Quando as doações completam R$ 250, o morador de rua que teve o 'passe comprado' recebe um kit composto de cesta básica, roupas e corte de cabelo.

Em entrevista ao Terra das Boas Ideias, os gaúchos João, 19 anos, da cidade de Novo Hamburgo, estudante de Publicidade e Propaganda, e Bruno, 20, da cidade de Dois Irmãos e estudante de Comunicação Digital, contam um pouco mais sobre essa história:

Quando começou o contato de vocês com moradores de rua? O que motivou esse contato?
João Burzlaff - Esse contato existia como existe com qualquer pessoa, no caminho para escola trabalho, etc.

Quantos kits já foram entregues?
Bruno H. Stein - Foram completados três kits até o momento, porém só uma entrega foi realizada. Nas próximas semanas devemos entregar os outros dois.

Ao terem a ideia, comentaram com outras pessoas? Foram incentivados? Houve quem não os compreendesse?
João - Comentamos a ideia com poucas pessoas, houve algum estranhamento por parte delas, mais a maioria incentivou.
Bruno - Pela excentricidade do conceito, até eu tive receio antes de iniciar o desenvolvimento. Com algumas mudanças na ideia original, chegamos a um consenso.

Percebo que não houve um rodízio muito grande de moradores no site. Está difícil obter ajuda? Existe desconfiança da parte das pessoas?
Bruno - Os números foram impressionantes durante a semana em que o site se manteve na grande mídia nacional. Logo que baixaram os holofotes, as contribuições praticamente estagnaram.
João - Existe, sim, essa desconfiança e como não temos nenhuma ajuda de fora, fica difícil aumentar o alcance do site. Estamos tentando criar uma plataforma livre para disponibilizar para entidades e assim fazer o site funcionar de maneira mais eficiente.

Quem ajuda é informado que o kit foi entregue?
João - Sim, comunicamos pelo nosso Twitter e o blog do sit. Um vídeo é postado com a entrega.
Bruno - Mantemos um blog - menos atualizado do que gostaríamos – no qual pretendemos publicar vídeos de cada doação realizada, para que os doadores possam ver seu esforço dando resultado.

Como é a seleção de moradores de rua para entrar no site?
João - Procuramos colocar pessoas que já conhecíamos e sabíamos que precisavam de ajuda.
Bruno - Os moradores de rua selecionados eram previamente conhecidos ou por mim ou pelo João. O contato é pessoal e tentamos esclarecer as dúvidas que eles têm - que são muitas. Houve um caso em que o morador de rua preferiu não participar do site; respeitamos.

Existe um campo no site aberto para moradores de rua indicados por leitores. Já houve indicações?
João - Já houve diversas e uma delas já resultou na entrada do José para o site.
Bruno - Indicações de moradores de rua foram abundantes. O grande problema é que são localizadas em diferentes regiões do país, e não temos logística para atender isso.

Vivemos em um mundo de grandes gênios da tecnologia, da informática, grandes criadores de softwares e hardwares, e a maioria visa o benefício próprio ou de um grupo. Por que trabalhar sem pensar em lucro, para beneficiar outras pessoas?
João - Penso que o mais importante é ter um ideal e um motivo para criar. Nós trabalhamos para criar algo que traga alguma mudança no mundo, seja diretamente ou por meio de questionamentos e críticas. O que fizemos foi incorporar isto em nosso site. E neste caso não havia espaço para lucro, a ideia precisa se manter pura.
Bruno - Achamos a ideia muito interessante e acreditamos nela. Pensamos que isso é motivo suficiente para executá-la, mesmo sem qualquer lucro financeiro.

Como ficou a vida de vocês depois do início desse trabalho? Mudou alguma coisa de vocês para com vocês mesmos e de vocês com relação às outras pessoas, familiares e amigos, por exemplo?
João - Além da experiência de administrar este site e falar com estas pessoas, tendo assim uma visão diferente da situação delas, agora tenho um trabalho que começa a mostrar o que quero fazer e quais são meus ideais.

Estão satisfeitos com o andamento do site?
João - Estamos satisfeitos com o alcance que o site teve e com a mídia gerada, mas ainda há muito para se fazer antes de dizer que este projeto está concluído. Temos planos para ampliá-lo bastante ainda, e nos próximos meses isso deve acontecer.

Ainda com relação à área social, vocês têm outros planos, outras ideias?
João – Sim, temos planos e outras ideias para diversas áreas que devem ser lançadas em um futuro próximo.

Mendigo Urbano
http://mendigourbano.com
No site, é contada a história de cada morador de rua elencado.
Também vale a pena assistir ao vídeo do site:



Vídeo: Divulgação

domingo, 2 de outubro de 2011

Seu Carlos teve que fugir da mira do satélite

Reencontrei seu Carlos, o meu vizinho da Araújo com a Consolação, na mesma esquina, agorinha. Mas ele estava só de passagem. Voltou a dormir na calçada do Teatro Cultura Artística por força das circunstâncias. E as circunstâncias foram as seguintes:

- no começo da semana, 2h da madrugada, a Guarda Metropolitana levou seu sono embora. “Acorda cidadão”, disseram;

- o motivo para tal perturbação do sossego foi a de sua retirada do local. “Aqui é muito visível. O senhor tem que procurar um lugar mais escondido”, disse um dos guardas;

- outro, querendo esclarecer, comentou que até ‘satélite’ capta a imagem do seu Carlos dormindo e a retransmite para todo o mundo;

- um terceiro, tentando ser mais simples, explicou que alguém denunciou seu Carlos por dormir naquele lugar.

O crime do seu Carlos: dormir na calçada da Araújo com a Consolação. 'Acusado' justamente na semana em que ele foi tão bom cidadão:

- amparou uma moça, moradora de rua, que havia sido agredida pelo namorado, também morador de rua;

- e dividiu o marmitex de feijoada ganhada com um desconhecido que do outro lado da rua o via comer, com os olhos marejados de tanto desejo.

Seu Carlos teve que se arrumar rápido, porque os guardas não arredariam o pé da esquina enquanto ele dali não saísse. Nem calçou os sapatos. Só queria sumir dali. E foi a pé para o Largo do Paissandu, terminar a noite em meio a uns maloqueiros, como ele chamar os moradores de rua mal-intencionados. No dia seguinte, voltou a dormir na calçada do teatro, em obras após o incêndio de anos atrás.

Diante dessas circunstâncias, então, seu Carlos já não é mais tão meu vizinho e não o verei mais diariamente, nem ouvirei seu “boa noite, vai com Deus”. Nem nossos curtos diálogos poderão mais ser captados pelos satélites indiscretos que gostam de ficar flagrando os cidadãos por aí, especialmente os que não têm onde morar.